MARCIO AITH
O governo planeja mudar as leis e as portarias que regulam o mercado de cartões de pagamento no país. E poderá ser investigada a existência de cartel entre as duas empresas que dominam o setor -a VisaNet, que detém a exclusividade para credenciar a bandeira Visa, e a Redecard, que monopoliza a licença da bandeira MasterCard.
Essa ofensiva decorre da divulgação, em abril, do estudo mais revelador já feito sobre a maneira como as duas empresas controlam os meios de pagamento eletrônico no Brasil.
O estudo foi feito pelo Banco Central, pela Secretaria de Direito Econômico (do Ministério da Justiça) e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (da Fazenda).
O levantamento concluiu que o mercado brasileiro de cartões é extremamente concentrado, impede a entrada de novos participantes e, por isso, precisa passar por profunda reformulação para repassar ganhos de escala e beneficiar a economia como um todo.
Em conversas com o governo, VisaNet e Redecard informaram que estão dispostas a promover mudanças para elevar a competitividade no setor.
O estudo apontou que a rentabilidade da VisaNet e da Redecard está bem acima da verificada em atividades com características de risco empresarial semelhantes. Para ter uma ideia, a margem Ebitda da Redecard, indicador de lucratividade da empresa, foi de 68,03% em 2008. A da VisaNet, de 62,3%. Para efeito de comparação, o índice da Gerdau, do setor de siderurgia, considerado altamente lucrativo, foi de 23,9%.
VisaNet e Redecard são responsáveis por 94% das transações e por 90% do volume financeiro das compras com cartões, que, em 2008, chegaram a R$ 375 bilhões.
As duas não só dominam o credenciamento dos lojistas das duas principais bandeiras como têm a exclusividade na cobrança do aluguel dos 2,4 milhões de terminais das lojas. Elas também controlam os serviços de captura de dados, de processamento e de liquidação das compras com cartões.
A utilização de "plástico" como meio de pagamento passou de 8,7% para 21,4% do consumo das famílias brasileiras entre 2000 e 2008. O cartão hoje é aceito para pagar condomínio, nas feiras e até por camelôs.
As duas empresas controlam praticamente todo o mercado. A VisaNet tem a exclusividade contratual para credenciar a bandeira Visa com lojistas. A empresa pertence ao Bradesco (com 39,5% do capital), ao Banco do Brasil (32%) e ao Santander (14,4%).
Já a Redecard é controlada pelo Itaú-Unibanco (50,1%). A rigor, a empresa não tem a exclusividade formal no credenciamento da bandeira MasterCard, mas é a única, pois as outras quatro instituições financeiras que obtiveram a mesma licença praticamente nunca exerceram o direito.
Uma das medidas em estudo é permitir ao lojista que cobre preços diferenciados para os diversos meios de pagamento: dinheiro, cheque ou cartão. Essa cobrança é proibida por portaria do Ministério da Fazenda.
Com a nova regra, os lojistas poderiam dar desconto sobre as compras com dinheiro. Para demovê-los, as empresas de cartões seriam obrigadas a cobrar taxas mais baixas.
Essa alternativa conta com a simpatia do BC, mas a Receita se opõe a ela por acreditar que incentivará a informalidade.
A Fecomercio SP elogia a proposta: "Os lojistas têm de ter a liberdade de cobrar o preço que julgarem ser o justo", diz Antônio Carlos Borges, economista e diretor-executivo da entidade. "Por uma questão de liberdade de mercado e para fugir do poder de mercado das empresas de cartão."
Outra medida em estudo é obrigar a VisaNet e a Redecard a fazerem uma cisão. Elas teriam de vender os negócios de captura, compensação e liquidação, ficando apenas com o credenciamento de lojistas.
Também aqui há dúvidas dentro do próprio governo. Enquanto a SDE quer uma solução mais drástica, o BC prefere um caminho "mais de mercado".
Segundo o BC, seria melhor forçar as duas empresas a abrir mão da exclusividade concedida pelas bandeiras. Se isso ocorrer, segundo o BC, diversas empresas de tecnologia entrariam no mercado.
Setor de cartões não repassa redução de custo
O mercado de cartões de crédito no Brasil apresenta anomalias graves que impedem a concorrência e oneram excessivamente os lojistas. Em última análise, os consumidores são também prejudicados, porque o alto custo para trabalhar com cartões é transferido para o preço dos produtos.
Essa é a conclusão do levantamento feito pelo Banco Central, pela Secretaria de Direito Econômico (ligada ao Ministério da Justiça) e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (Fazenda).
As principais conclusões do trabalho são as seguintes:
1) Nas transações com cartão de crédito no Brasil, o prazo entre a data de compra e a data do crédito ao estabelecimento vendedor é, em geral, de 30 dias. No exterior, o prazo praticado é de 2 dias.
Essa diferença de prazo permite aos bancos emissores de cartões no Brasil, coincidentemente proprietários da Redecard e da VisaNet, que não arquem com o custo do dinheiro durante o período. Não há risco, já que os portadores dos cartões pagam suas faturas em média 27 dias após a compra.
2) No Brasil, os comerciantes pagam aluguel de até R$ 80 por terminal de captura, conhecido como POS (do inglês "point of sale", ou ponto de venda). Os credenciadores no Brasil são os únicos no mundo que utilizam redes segregadas de terminais POS.
Isso significa que as maquininhas não conversam umas com as outras. O comerciante tem de alugar um terminal para cada bandeira de cartão com que trabalha. "Em 2007, a receita auferida pela VisaNet e pela Redecard seria mais do que suficiente para comprar todo o respectivo imobilizado", segundo o estudo do governo.
3) A rentabilidade da VisaNet e da Redecard está há longo período de tempo bem acima daquela verificada em atividades com características de risco empresarial assemelhadas. O lucro da Redecard e da VisaNet subiu 302% entre 2003 e 2007, enquanto o número de cartões ativos subiu 94%.
4) As reduções de custos advindas de ganhos de escala na tecnologia não estão sendo repassadas para os estabelecimentos. "De acordo com a estrutura adotada no Brasil, onde o credenciamento das principais bandeiras é exercido de forma monopolizada, os credenciadores se beneficiam mais fortemente dessas economias [de escala]."
Esses são apenas alguns dos achados mais visíveis. Há outros, intangíveis.
Hoje, quem quiser competir com a VisaNet e a Redecard será obrigado a utilizar os serviços de compensação e de liquidação das próprias empresas, o que barra a entrada de competidores.
As duas empresas que controlam o setor têm até o fim deste mês para apresentar suas críticas ao trabalho e oferecer sugestões para elevar a competitividade do mercado que atualmente dominam.
Se julgar insuficientes essas soluções, o governo poderá promover uma investigação para averiguar a possível formação de cartel e abuso de poder econômico no setor.
Barreiras
Diretor de Política Monetária do BC, o economista Mario Gomes Torós disse à Folha que o governo já tem um leque de alternativas para elevar a competitividade do setor.
"Fizemos um diagnóstico técnico sobre a indústria, baseado nas melhores práticas de mercado", disse ele. "O estudo mostrou um alto grau de verticalização da indústria e apontou alternativas que podem melhorar a competitividade, com benefícios à sociedade."
O Ministério da Fazenda diz que as práticas, as taxas e os prazos cobrados pelas empresas credenciadoras de cartões de crédito são incompatíveis com o momento atual da economia, com estabilidade e juros baixos. A Fazenda diz estar preparada para adotar medidas mais drásticas, se for o caso.
Empresas se dizem dispostas a mudanças
Em conversas com o governo, a VisaNet e a Redecard informaram que estão dispostas a promover mudanças para trazer competitividade ao setor de cartões e impedir uma investigação de formação de cartel e de abuso de poder econômico.
A Folha apurou que a VisaNet prometeu abrir mão da exclusividade da bandeira Visa em julho de 2010. Com isso, pretende desestimular o governo a adotar medidas de força em defesa da concorrência.
O Santander, acionista da VisaNet, comunicou ao governo que exercerá sua licença para usar a marca MasterCard em breve, muito provavelmente no segundo semestre.
Com isso, a Redecard terá seu primeiro competidor no uso dessa bandeira. O Santander tem essa licença, sem usá-la em grande escala -mesmo caso do IBI, instituição financeira que era ligada à rede varejista C&A e que foi comprada pelo Bradesco por R$ 1,4 bilhão na última sexta. HSBC e Tribanco (do grupo Martins, atacadista com atuação forte no Triângulo Mineiro) também têm a licença, mas nunca exerceram o direito de usá-la.
A VisaNet e a Redecard também disseram ao governo serem contrárias à permissão aos lojistas para cobrar preços diferenciados com base nos meios de pagamento. Segundo elas, a medida estimularia a informalidade e não traria a competitividade desejada.
Das soluções aventadas pelo estudo oficial do setor, no entanto, a que mais assusta as duas empresas é a ideia de obrigá-las a separar os negócios de credenciamento dos de compensação e liquidação.
Redecard e VisaNet querem manter suas estruturas atuais. Estão contratando pareceres para convencer o governo de que seu formato atual não é um empecilho à competição.
A investigação do governo ocorre em um momento delicado para a VisaNet. Em maio passado, a empresa retomou seu processo de abertura de capital, que havia sido suspenso em setembro de 2008 devido à crise global.
Com a ofensiva do governo para dissolver o duopólio no setor, o modelo de negócios da Visanet poderá mudar, impactando a procura por seu IPO (oferta inicial de ações).
Outro lado
A VisaNet informa que, por estar em processo de oferta pública, não pode se pronunciar sobre o assunto.
Em notas, a Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços) e a Redecard informaram que não vão se manifestar sobre o estudo do Banco Central, da SDE e da Seae.
Segundo o consultor Boanerges Ramos Freire, especializado em varejo financeiro, os bancos já têm argumentos sólidos contra alguns aspectos do estudo feito pelo governo.
"A exclusividade que a Redecard e a VisaNet hoje possuem não são apenas um aspecto de exercício de poder econômico. São também resultado de um processo histórico. As duas empresas conseguiram organizar o mercado e dar o salto tecnológico que permitiu a popularização do uso de cartões no Brasil", diz o consultor.
Compartilhamento
Para Freire, o compartilhamento de terminais de cartões, medida exigida pelo governo, não é algo tão simples de ser feito. "É verdade que, no exterior, um mesmo terminal faz operações com cartões de bandeiras distintas. Mas, fora do Brasil, essas maquininhas têm uso limitado. Nós criamos modalidades distintas, como a compra parcelada no cartão, que dificultam o compartilhamento dos terminais." (MA)